sexta-feira, 12 de agosto de 2016

As Fontes

Sofia de Melo Breyner Andresen

Um dia quebrarei todas as pontes
que ligam ligam o meu ser vivo total 
à agitação do mundo irreal
Com calma subirei até as fontes

Irei ate as fontes onde mora
a plenitude o límpido esplendor
que me foi prometido em cada hora
e na face incompleta do amor

Irei beber a luz e o amanhecer
irei beber a voz dessa promessa
que às vezes como um vôo me atravessa
e nela cumprirei todo o meu ser.


O Homem que Contempla

Vejo que as tempestades vêm aí 
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos, 
batem nas minhas janelas assustadas 
e ouço as distâncias dizerem coisas 
que não sei suportar sem um amigo, 
que não posso amar sem uma irmã. 

E a tempestade rodopia, e transforma tudo, 
atravessa a floresta e o tempo 
e tudo parece sem idade: 
a paisagem, como um verso do saltério, 
é pujança, ardor, eternidade. 

Que pequeno é aquilo contra que lutamos, 
como é imenso, o que contra nós luta; 
se nos deixássemos, como fazem as coisas, 
assaltar assim pela grande tempestade, — 
chegaríamos longe e seríamos anónimos. 

Triunfamos sobre o que é Pequeno 
e o próprio êxito torna-nos pequenos. 
Nem o Eterno nem o Extraordinário 
serão derrotados por nós. 
Este é o anjo que aparecia 
aos lutadores do Antigo Testamento: 
quando os nervos dos seus adversários 
na luta ficavam tensos e como metal, 
sentia-os ele debaixo dos seus dedos 
como cordas tocando profundas melodias. 

Aquele que venceu este anjo 
que tantas vezes renunciou à luta. 
esse caminha erecto, justificado, 
e sai grande daquela dura mão 
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta. 
Os triunfos já não o tentam. 
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido 
por algo cada vez maior. 

Rainer Maria Rilke, in "O Livro das Imagens" 
Tradução de Maria João Costa Pereira 


quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012



Lobos? São muitos.
Mas tu podes ainda
A palavra na língua
Aquietá-los.

Mortos? O mundo.
Mas podes acordá-lo
Sortilégio de vida
Na palavra escrita.

Lúcidos? São poucos.
Mas se farão milhares
Se à lucidez dos poucos
Te juntares.

Raros? Teus preclaros amigos.
E tu mesmo, raro.
Se nas coisas que digo
Acreditares.

HILDA HILST

sábado, 25 de junho de 2011

As Fontes



Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo irreal,
E calma subirei até às fontes

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um vôo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Frei Betto:

Dez conselhos para viver a religião:

1. Religue-se. Evite o solipsismo, o individualismo, a solidão nefasta. Religue-se ao mais profundo de si mesmo, lá onde se cultivam os bens infinitos; à natureza, da qual somos todos expressão e consciência; ao próximo, de quem inevitavelmente dependemos; a Deus, que nos ama incondicionalmente. Isto é religião, re-ligar.

2. Tenha presente que as religiões surgiram na história da humanidade há cerca de oito mil anos. A espiritualidade, porém, é tão antiga quanto a própria humanidade. Ela é o fundamento de toda religião, assim como o amor em relação à família. Busque na sua religião aprimorar a sua espiritualidade. Desconfie de religião que não cultiva a espiritualidade e prioriza dogmas, preceitos, mandamentos, hierarquias e leis.

3. Verifique se a sua religião está centrada no dom maior de Deus: a vida. Religião centrada na autoridade, na doutrina, na ideia de pecado, na predestinação, é ópio do povo. “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância”, disse Jesus (João 10,10). Portanto, a religião não pode manter-se indiferente a tudo que impede ou ameaça a vida: opressão, exclusão, submissão, discriminação, desqualificação de quem não abraça o mesmo credo.

4. Engaje-se numa comunidade religiosa comprometida com o aprimoramento da espiritualidade. Religião é comunhão. E imprima à sua comunidade caráter social: combate à miséria; solidariedade aos pobres e injustiçados; defesa intransigente da vida; denúncia das estruturas de morte; anúncio de um “outro mundo possível”, mais justo e livre, onde todos possam viver com dignidade e felicidade.

5. Interiorize sua experiência religiosa. Transforme o seu crer no seu fazer. Reduza a contradição entre a sua oração e a sua ação. Faça pelos outros o que gostaria que fizessem por você. Ame assim como Deus nos ama: incondicionalmente.

6. Ore. Religião sem oração é cardápio sem alimento. Reserve um momento de seu dia para encontrar-se com Deus no mais íntimo de si mesmo. Medite. Deixe o Espírito divino lapidar o seu espírito, desatar os seus nós interiores, dilatar sua capacidade amorosa.

7. Seja tolerante com as outras religiões, assim como gostaria que fossem com a sua. Livre-se de qualquer tendência fundamentalista de quem se julga dono da verdade e melhor intérprete da vontade de Deus. Procure dialogar com aqueles que manifestam crenças diferentes da sua. Quem ama não é intolerante.

8. Lembre-se: Deus não tem religião. Nós é que, ao institucionalizar diferentes experiências espirituais, criamos as religiões. Todas elas estão inseridas neste mundo em que vivemos e mantêm com ele uma intrínseca interrelação. Toda religião desempenha, na sociedade em que se insere, um papel político, seja legitimando injustiças, ao se manter indiferente a elas, seja ao denunciá-las profeticamente em nome do princípio de que somos todos filhos e filhas de Deus. Portanto, temos o direito de fazer da humanidade uma família.

9. A árvore se conhece pelos frutos. Avalie se a sua religião é amorosa ou excludente, semeadora de bênçãos ou arauto do inferno, serva do projeto de Deus na história humana ou do poder do dinheiro.

10. Deus é amor. Religião que não conduz ao amor não é coisa de Deus. Mais importante que ter fé, abraçar uma religião, frequentar templos, é amar. “Ainda que eu tivesse fé capaz de transportar montanhas, se não tivesse o amor isso de nada me serviria”, disse o apóstolo Paulo (1 Coríntios 13, 2). Mais vale um ateu que ama que um crente que odeia, discrimina e oprime. O amor é a raiz e o fruto de toda verdadeira religião; e a experiência de Deus, de toda autêntica fé.

* Escritor

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Rua
Procuro a rua
que ainda me resta:
É longa, é alta,
não é essa.
Esqueço o nome,
por sono ou pressa:
é alta, é clara,
mas não é esta.
Em cada esquina
havia uma festa:
é clara, é vasta,
não é essa.
Nunca me lembro
onde começa:
é vasta, é longa,
mas não é esta.
Rua que não
se manifesta:
é longa, é alta,
não é essa.
Cecília Meireles

domingo, 24 de outubro de 2010

Que mistério tem Clarice...

Benjamim Moser, o jovem biógrafo americano de Clarice Lispector, vai estar aqui em Porto Alegre, autografando seu livro CLARICE, na Feira do Livro.

Minha amiga Áurea me deu o livro de presente no iníco do ano e não desgrudei o olho da leitura, do início ao fim. Relembrei a intensidade que ler Clarice Lispector sempre teve para mim desde o primeiro contato que tive com sua obra.

Me lembro do impacto que tive quando, aos 17 anos, li Perto do Coração Selvagem. Chegou a mim via uma colega do Colegial, que me emprestou pra que eu lesse e pudesse comentar com ela certas passagens que ela não sabia se tinha entendido... E assim ficamos imersas naquela literatura impressionante, que continha uma verdade muito além da nossa compreensão do momento, mas que a gente pressentia, e por isso se encantava.

Eu queria decifrar a Clarice, compreender aquele mistério da alma humana, aquela profundidade que ela conseguia tocar. Vieram os outros livros, Felicidade Clandestina, A Paixão segundo GH... especialmente esses dois: não fui a mesma depois de tê-los lido.

"Escrevi livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe", ela disse. Assim foi.

A biografia escrita pelo Benjamin Moser é maravilhosa. Acrescenta muitos fatos novos e importantes ao que já se sabia de Clarice Lispector. Essa entrevista dele é bem interessante e também o documentário com a última entrevista dela, poucos dias antes de morrer. Vale a pena.



sábado, 23 de outubro de 2010

É preciso não esquecer nada


É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.

O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles